Psiiiiiiiiiu, as paredes têm ouvírus. Um conto da era da quarentena

 

        No local de trabalho, o assunto é a coqueluche do momento, monopoliza as atenções, não há espaço para tratar de outros assuntos, é preciso falar dele. Causa-nos apreensão, medo, dúvidas, incertezas, ansiedade. Tudo é incerto e não sabido. Provável? Possível? A especulação, plena, prevalece ante os demais assuntos.

        -Atenção todos, por favor, silêncio, vamos lá. Estão todos aí? Está faltando alguém?

Uma voz ao fundo responde que fulano foi ao banheiro e já volta, outra diz: beltrana só vem mais tarde e tem a sicrana que não virá hoje.

        - Ok, tudo bem. É o seguinte. “Nós sabemos que o coronavírus, é um fato preocupante, não sabemos o que será decidido pelas instâncias superiores, se as aulas serão suspensas, vamos aguardar. O que podemos e faremos agora é trazer informação para estas turminhas já que a falta delas só atrapalha e nós como educadores devemos orientá-los”.

        Vozes, comentários, gracejos interrompem a fala.

        -Silêncio. “Olha, eu tenho aqui uma folha com as orientações que deverão ser passadas para todo mundo, eu vou distribuir e vocês explicarão e conversarão com eles, é agora, todo mundo fará nesta aula, entendido?”

         Todos já devidamente estabelecidos em seus recintos começam o trabalho de utilidade pública. As reações são as costumeiras e já previstas. “Ah, de novo não”, “Já estou de saco cheio de ouvir isso”, “Nós já sabemos de tudo, deixa isso pra lá”, “É, deixa a aula livre”. E prossegue o trabalho de conscientização, apelos à razão, ao bom senso, a responsabilidade, ouvindo, falando, argumentando, problematizando. Cidadania, liberdade, escolhas, democracia, saúde pública. E como diria o professor Raimundo, “e o salário, ó”

         Fomos surpreendidos, aulas suspensas, serviços internos prosseguem. Ao trabalho. O corpo docente segue realizando com mais tranquilidade, aquilo que normalmente é mais agitado. De novo surpreendidos, fiquem em casa. Agora é home office. Fiquem em casa, passaremos as instruções, via internet.

        O calendário vai ganhando traços enquanto gaia gira no espaço. Isolamento, tarefas, tempo livre. Olhos e atenção voltados a coisas que não me importaria em outros momentos. Tudo é observado e perscrutado. No que nos transformamos? Ainda somos os mesmos? A espécie que pensa? Se pensamos, como podemos ter chegado até este ponto?

        Nossas casas não são mais casas. Agora cada casa é uma floresta, estamos na selva. Ainda somos a espécie dominante, o que meros artrópodes e outros bichos podem fazer contra nós? Somos maiores, mais fortes, mais poderosos, temos mais truques. Opa, mas, espera aí. E o tal de SARS-COv 2? Não é um ser tão minúsculo que não poderíamos enxerga-los, mesmo tendo milhões na ponta de nossos narizes? E que podem nos matar em questão de dias, sem sequer sabermos o que aconteceu? Como alguém que foi atropelado por um caminhão? Sim, é verdade, temos um inimigo invisível, oculto e sorrateiro. Pode estar em qualquer lugar agora. Agora, advérbio petulante, o que você muda? Lutar, defender, precaver, higienizar, comer, dormir, ler ou qualquer coisa que eu queira fazer? O que você pode fazer? Você é imune? Lava as mãos com álcool gel?

         A paranoia está instalada. E a aquele pacote de pão? Não carrega um vírus, aliás, vários? Como posso saber que o funcionário o manipulou de forma correta? E esta caixa de leite longa vida? Quem me garante que a minha vida ainda será longa? E agora? Este advérbio de novo, não tem o que fazer lá na língua portuguesa? Nenhuma reforma ortográfica para se inserir? Que opções tenho? Vou lavar tudo que puder. Tem embalagem que não dá, e. . .? Não vou mais te citar, você quer projeção para capitalizar, nos momentos de crise? Você sim é um verdadeiro vírus, vou renomear sua identidade de classe, agora você é um advírus, o curioso é que você não varia. Pode um vírus não variar?     

        Você é o irmão menos perigoso, daquele outro psicopata que está aí fora contaminando todo mundo. Por que isso? O que as pessoas fizeram para ele? Por que ele não deixa todos em paz? Só queremos nossas vidas de volta. Você tem pai? Mãe? Como foi a infância de vocês? Eles eram presentes? Brincavam? Davam presentes? E o seu irmão? Como ele era? Ele frequentou escola? Fez algo grave antes? Ele apanhava dos seus pais? E você? Você diria que ama a vida? O seu irmão eu nem preciso perguntar.

      Olha a situação, volto da rua, lavo as mãos com água e sabão, passo álcool gel nas maçanetas, tiro minhas roupas que não encosto em nenhum móvel, vai direto para o tanque, vou eliminar os prováveis clones do seu irmão, que podem estar espalhados em cada fibra de minhas roupas. Quem me garante que não esbarrei em alguma colônia de psicopatas-clones espalhadas por aí? Hein? Está me ouvindo? Você tem orelha? Sim, porque o seu irmão, já se sabe que não tem, aliás, uma composição bastante ridícula e simplória, assemelha-se a um micro-brócolis arredondado que sequer possui um DNA como qualquer ser vivo que se preze possui.

      Meu nariz capta odores uns bons outros ruins, eles parecem mais vivos e intensos, o que mudou? Será que estou prestando mais atenção àquilo que antes costumava ignorar? Que o tempo talvez não me permitisse sentir? Estou com o olfato mais apurado? Opa, se for isso é bom, eu sei que seu irmão costuma roubar este sentido de algumas vítimas, além de psicopata, é um ladrão. Talvez ele ache isso tudo uma bobagem, Uma influenzazinha qualquer, não é mesmo?

     Minha audição também me parece mais viva, parece que ganhou um élan, um vigor e uma vitalidade nunca percebidas. Estou sonhando, ou estou ouvindo vizinhos conversarem? Marido e mulher, de manhã, conversando na cozinha? Não estou ouvindo uma bola quicando e batendo na parede? Talvez uma criança na hora do” intervalo”, até voltar as atividades normais? Ou um outro vizinho batendo, talvez um pedaço grande e pesado de tecido, de um lado a outro, quem sabe espantando mosquitos? E o sino da igreja, que ouço badalar? Há tantos anos vivendo aqui, nunca o havia percebido. A igreja mais próxima está a uma distância razoável. Como isso é possível? Só começou agora? Ou amentaram a intensidade do som? O que o advírus poderia dizer? Nada? Eu sabia. As paredes escutam meus ruídos? Captam meus segredos? Devo preocupar-me?

    Já a fala, se ela sofrer alguma deterioração, corro o risco de não perceber, afinal, em tempos de isolamento é a que menos tenho utilizado. Como a comunicação deste século se dá por frases curtas e escritas em um aparelhinho chamado de inteligente, pouco uso faço deste sentido. Como afirmou um dramaturgo inglês do século XVI, muito reverenciado nos dias que correm, “os homens de poucas palavras, são os melhores”. Um brinde a ele.

 

Fonte da imagem: depositphotos

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