Cachorros e crocodilos

 


 Estou passando por uma triagem em um atendimento, sentado no local indicado de costas para ela, respondo suas perguntas. Espero sempre frieza e distanciamento dos profissionais desta área. Não é que acredito que não tenham coração, são ensinados a não se envolverem para manter sua racionalidade, porém acredito que muitos extrapolam nesta conduta.

      Não foi o caso dela, enfermeira de nome incomum, destes nomes nordestinos extremamente criativos, desvinculados de qualquer moda. Acho isto incrível, duvido que em outro país se encontre povo tão fecundo para elaborar nomes, meus pais mesmo são exemplos desta fertilidade.

      Ela usa minha idade como gancho para puxar assunto, fala de sua condição de viúva, sobre dor, morte, saudade, vida após a morte, recomeço.  Em poucas frases trocadas havia desabafado. Viúva, ainda em luto, procura respostas em uma religião diferente da sua. É compreensível, há uma lacuna que ainda não foi preenchida. Diz não estar pronta para um outro envolvimento emocional, o que me lembra de um antigo costume hindu, já em desuso, o sati, ritual no qual a viúva se atirava na fogueira para ser cremada junto com o falecido.

      Chamado pelo médico que erra meu sobrenome, fazia muito tempo que isto não acontecia, chamou-me duas vezes, muito rápido, do lugar onde estava levaria pelo menos meio minuto até chegar a seu consultório. Quando cheguei não estava na sala. Algo muito incomum que não me lembro de ter presenciado alguma vez. Fiquei matutando: só podem ser três coisas: ou é atrapalhado, arrogante ou surgiu uma emergência. Imediatamente me censurei arrogância não, preciso ter paciência.

      Percebo pelo seu fenótipo que é procedente de algum país sul-americano, o sotaque espanhol não me deixa enganar. Quando começo a falar me interrompe várias vezes. Era como se quisesse decidir o que eu iria ou deveria dizer, mesmo tendo a folha com as anotações da enfermeira que não se deu ao trabalho de ler. Foi um atendimento muito rápido, desumanizado, claramente cronometrado que deveria acabar logo. Não estava disposto a considerar tudo que eu tinha a dizer. Já estava pronto a me dispensar, afirmando que não tinha nada.

      Insisti em falar tudo que precisava. Mostrou-se insatisfeito ao saber dos pormenores e do contexto como se eu houvesse deliberadamente sonegado informações importantes. Meio a contragosto acrescentou as informações relevantes em seus escritos, fez a receita, falou-me das orientações que seguia como a se justificar da sua falha no atendimento. Recomendou e atestou o que precisava e me liberou.

      Duas pessoas no mesmo dia, no mesmo local de trabalho, uso aqui estes dois bichos como metáfora: o cachorro como sendo o melhor amigo do homem, representa a enfermeira com seu humanismo, tratando pessoas com dignidade e consideração, me desejou melhoras sinceras. O crocodilo animal perigoso que pode tirar nossa vida num piscar de olhos, representa o médico, frio, distante e com sua arrogância que não permite que o paciente possa expressar-se em sua plenitude, o que compromete seu atendimento. Parece que estou falando cobras e lagartos de um atendimento, mas não. No cômputo geral, o resultado foi satisfatório. Hoje foi dia de cachorro.

 

Fonte da imagem: 

deposiphotos

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