Dizem que o Brasil está dividido. Há uma cisão que os separa em duas partes distintas. De fato há sim dois Brasis. O primeiro podemos chamar de Brasil concreto, aquele que tem existência real, é palpável e tangível, podemos vê-lo, senti-lo e tocá-lo. O país que durante três séculos e meio, explorou uma etnia, a negra, escravizando-a. Explorou-a ininterruptamente até a última gota de sangue, foi o último país a abolir esta prática nefanda, foram cinco milhões que geraram os seus descendentes, hoje 115 milhões. É no mínimo meio Brasil negro, só a Nigéria na África, possui mais negros. E não nos esqueçamos da miscigenação, já que brancos, negros e índios interagiram, portanto, nenhuma destas etnias é pura, ou seja, são constituídas apenas de suas próprias características. Há uma mistura, portanto, todos nós brancos, somos também indígenas e negros, ou seja, somos um país miscigenado, indígena, negro.
Voltemos à escravidão. Se demoramos trezentos e cinquenta anos para nos convencer de que não era correto escravizar pessoas, era porque este país achava normal e aceitável escravizar negros e lucrar com eles. Será que podemos acreditar que em 1888, quando a lei Áurea, extinguiu a escravidão, o racismo cultivado em séculos foi extinto junto? Que a cultura (racista) passada de pai para filho, acabou da noite para o dia? Que os negros a partir daquele momento seriam tratados de igual para igual? Claro que não.
Ainda hoje, passados 132 anos do fim da escravidão, as pessoas negras, sofrem com a desigualdade, a pobreza, a miséria e a violência. Vamos a alguns dados: nos bairros de maioria negra, a violência é maior; nas favelas, as pessoas negras são maioria; as pessoas negras recebem salários mais baixos; os presos negros são a imensa maioria; os assassinatos de pessoas negras são em número muito mais altos; tudo aqui sempre em comparação aos brancos.
Não nos esqueçamos dos cargos e posições sociais deste país. A maioria dos médicos é branca. Juízes? Brancos. Engenheiros e arquitetos? Brancos. Estudantes universitários da USP? Até recentemente até 90% eram brancos. Banqueiro negro conhece algum? Algum grande industrial bilionário que seja negro? Algum grande fazendeiro? Se existir, é uma minoria tão insignificante, numericamente falando que quase não conta. Brigadeiros, almirantes, generais de três estrelas? Acho que não de novo. É tudo coincidência? Ou estas posições ocupadas por brancos são resultado de construções sociais que deliberadamente excluíram os negros? O chamado, racismo estrutural, que tem gente que acredita que não existe?
O outro Brasil, vamos chama-lo de mitológico. Os gregos na antiguidade, em uma época que ainda não existiam a escrita, a ciência e nem uma série de facilidades que hoje temos, encontraram um meio de transmitir conhecimentos e explicar fatos que não eram muito bem entendidos, às vezes não tinham fundamentos. Eram baseados em personagens sobrenaturais, deuses e heróis, tudo isso costurado com uma simbologia que dava sentido aquelas estórias fantásticas. Não tinha nada de científico, até porque a ciência ainda não existia.
No Brasil mitológico, não existe ciência, lógica, racionalidade, existem mito, profetas, heróis, deuses, terra plana e toda uma narrativa de negação da realidade. Neste país, não existe racismo. O vice Mourão, disse que racismo não existe no Brasil, muito menos o estrutural. Homem de ascendência indígena declarada enquanto candidato em 2018, chegou a afirmar que o Brasil herdou “a indolência dos indígenas e a malandragem dos africanos”, nesta curta frase ele foi duplamente racista, pois desqualifica as duas etnias constituintes da nação brasileira. Esta visão não é nova. Querem melhor exemplo de racismo estrutural, negado pelo próprio?
Enquanto o Brasil fingir que não é racista, que não há racismo estrutural, que negros e brancos possuem os mesmos direitos, não avançaremos na luta pela igualdade entre todos sem discriminação de qualquer tipo e o país seguirá sendo dois, o real e concreto, injusto e desumano, racista envergonhado, para os negros e o mitológico, imaginador, que crê em um país lindo, feliz e unido com a raça branca colocando-se no mesmo nível das outras, para os brancos. Com qual destes você se identifica?

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